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As Içás e a Gastronomia de Resistência no Vale do Paraíba

Quando criança, eu e meus amigos do bairro saíamos correndo atrás das içás logo após a primeira chuva. A gente ria, caçava as iças com a mão, colocava em latinhas de marmelada e torrava na fogueira na rua de terra. Era diversão, era curiosidade — e nem imaginávamos que por trás daquele costume havia uma tradição milenar, passada dos povos indígenas aos bandeirantes e tropeiros, atravessando gerações até chegar a nós. Anos depois, fui descobrir que paulista é, sim, comedor de formiga — com orgulho e com história.

Em 2010, durante o curso de Gastronomia, escolhemos como tema do nosso TCC a comida tradicional do Vale do Paraíba. E digo escolhemos porque essa viagem não foi solitária: fui até Silveiras acompanhado pelos colegas do grupo de trabalho, todos animados com a possibilidade de vivenciar, de perto, os sabores e saberes que resistem naquela região. Foi nessa busca que conhecemos o Sr. Ocílio Ferraz— figura lendária do Vale do Paraíba, respeitado por sua sabedoria com as formigas içás, ou tanajuras, como também são chamadas.

De fala mansa e um jeito calmo de caminhar, o Sr. Ocílio nos recebeu com simplicidade e generosidade. Nos levou ao campo, mostrou os sinais da natureza, explicou que não era só sair pegando as formigas: era preciso escutar a terra. “Ela avisa. Tem cheiro, tem sinal, tem o tempo certo”, ele dizia, com a autoridade de quem aprendeu tudo com o pai e o avô, e nunca leu isso em livro algum.

A coleta foi feita logo após a primeira chuva da primavera, quando o solo ainda estava úmido e as formigas aladas emergiam para o voo nupcial. Foram eram recolhidas com cuidado, colocadas em baldes com farinha de mandioca para soltarem as asas, e depois limpas manualmente. Iniciamos o preparo em panela de ferro, no fogão a lenha, com torra cuidadosa, que liberava um aroma entre o da castanha tostada e o aroma de acido fórmico que lentamente foi se dissipando. Acrescentado gordura de porco caipira e farinha de mandioca local, deixando a farofa de içás com um sabor intenso, amanteigado, terroso — diferente de tudo que se come em um restaurante comum.

Ali, na cozinha do Sr. Ocílio, entendi de verdade o que os cronistas já diziam no século XIX: paulista é comedor de formiga. Em São Paulo, especialmente no interior, as içás eram vendidas nas ruas, servidas em farofas e misturadas a angu. Monteiro Lobato as chamava de “caviar do Vale”. Era uma iguaria democrática — alimento de roça, mas também produto de desejo na cidade.

Aquele dia ficou marcado em todos nós. Voltamos para casa com os potes cheios de içás e a cabeça ainda mais cheia: de perguntas, de respeito e de vontade de preservar aquele saber. Entendi que comer içá não é exotismo. É prática ancestral, é nutrição sustentável, é identidade. É conexão com o tempo da terra e com a cultura de um Brasil que resiste — apesar da pressa, dos rótulos e do esquecimento.

Até hoje, quando sinto o cheiro da lenha, lembro das içás. E do Sr. Ocílio, que nos ensinou que, para cozinhar com verdade, é preciso primeiro saber ouvir o chão que a gente pisa.

Quanto ao TCC? Bem ai é outra história e que contarei em breve!

Gastronomia de Verdade: O Que Vi (e Provei) Como Jurado no 4º Festival Gastronômico da Mandioca

Sabe quando chega um convite que te enche de orgulho? Na noite de  13 de julho , tive a alegria de ser jurado no 4º Festival Gastronômico da Mandioca, realizado na cidade de Santa Maria da Serra – SP. O Evento teve a participação dos restaurante e chefs locais com o apoio da Prefeitura Municipal de Santa Maria da Serra.

Como chef e associado da FIC – Federazione Italiana Cuochi Brasil, representar a The Cooking School em um evento como esse foi mais do que uma honra: foi uma oportunidade de valorizar os ingredientes da nossa terra e reconhecer a força da cultura alimentar brasileira.

Mais do que uma competição culinária, o festival foi um verdadeiro encontro de saberes, sabores e histórias em torno da mandioca — um ingrediente símbolo da identidade alimentar do nosso país.

Tive a honra de dividir a bancada de jurados com duas mulheres inspiradoras: Cintia Tomie Suguino, turismóloga da Partiu Rural e instrutora de Turismo do Senar-SP, e Rose Vasselo, vice-prefeita de Santa Maria da Serra e grande entusiasta da cultura local. O olhar atento e sensível de cada uma tornou a experiência ainda mais rica.

Durante o evento, provamos receitas que iam do tradicional ao criativo, do comfort food ao ousado. Teve mandioca em pratos doces, salgados, massas, petiscos, bebidas e até em preparos que surpreenderam pela originalidade. 
Ser jurado é muito mais do que degustar. É escutar, observar, valorizar a técnica e, principalmente, entender a história por trás de cada receita. Muitas delas traziam memórias afetivas, referências culturais e um forte vínculo com o território. 

O festival reforçou algo em que acredito profundamente: a mandioca é um patrimônio vivo da nossa culinária. Um ingrediente versátil, afetivo, e cheio de possibilidades — que merece ser valorizado e explorado com respeito e criatividade.

Agradeço imensamente à organização pelo convite e pela confiança. Participar dessa edição foi uma experiência marcante, e mais uma prova de que a gastronomia é uma ponte poderosa entre tradição e inovação.

E se você ainda não participou de um festival como esse, fica aqui meu convite para o próximo Festival que ocorrerá em julho de 2025. Experimente, converse, descubra. A mandioca (e a cozinha brasileira como um todo) tem muito a nos ensinar.

Até a próxima!